Tragédia em Santa Maria: O que a balada tem a ver com cidadania

Tragédias que comoveram o Brasil nas últimas décadas deixaram, além da dor das famílias, a sensação de que poderiam ter sido evitadas, não fossem a impunidade, a negligência dos governos e a cultura do “jeitinho” brasileiro. Neste contexto social e ético, discutem-se as razões para a morte de 238 jovens em Santa Maria, no Rio Grande do Sul.
O incêndio na boate Kiss, ocorrido na madrugada de 27 de janeiro, é considerado o mais mortal no país desde o Gran-Circus Norte-Americano, que vitimou 503 pessoas (70% delas crianças) em Niterói, em 1962.

O fogo na casa noturna foi causado pela queima de artefatos pirotécnicos durante um show que, em razão das péssimas condições de segurança do local, transformou a boate em uma verdadeira “câmara de gás” nazista. O revestimento de espuma do teto produziu, quando queimado, uma fumaça tóxica – mistura de cianeto e monóxido de carbono – que sufocou as vítimas em poucos minutos. Outras 124 foram internadas em hospitais da cidade.

O estabelecimento estava superlotado com, estima-se, mais de mil pessoas, entre estudantes, funcionários e militares da base do Exército de Santa Maria. A tragédia deixou de luto a tranquila cidade universitária de 262 mil habitantes, a segunda do Estado com mais pessoas de classes A e B.

A maioria dos mortos eram alunos de sete instituições de ensino superior locais, incluindo a tradicional Universidade Federal de Santa Maria, que possui 27 mil estudantes.

O caso também repercutiu na imprensa mundial, de olho no país por conta da organização da Copa do Mundo (2014) e dos Jogos Olímpicos (2016). A propaganda negativa obrigou as autoridades a agirem rapidamente. Dois sócios da boate e dois integrantes da banda que se apresentava naquela noite, a “Gurizada Fandangueira”, foram presos. A prefeitura e o Corpo de Bombeiros também são investigados por omissão na fiscalização do clube, que estava com os alvarás de funcionamento vencidos.

Houve ainda uma repercussão sem precedentes nas redes sociais, por conta principalmente do perfil jovem das vítimas (178 tinham idades entre 18 e 26 anos). As mensagens continham desde um conteúdo solidário às famílias até manifestações de revolta contra o descaso das instituições brasileiras.

De acordo com o IBGE, quase metade da população brasileira (48,6%) possui até 29 anos de idade. Esta mesma faixa etária lidera os rankings de vítimas de homicídios e acidentes de trânsito (sobretudo aqueles envolvendo motocicletas). Desta vez, porém, o massacre aconteceu em um lugar inesperado, de festa e de confraternização entre estudantes.

 “Jeitinho”

O incêndio na boate de Santa Maria figura na história recente de calamidades, como enchentes, desastres aéreos e desabamentos, que ganharam notoriedade graças aos meios de comunicação modernos, como a TV e a internet.

Em 1974, o incêndio do edifício Joelma, em São Paulo, deixou 187 mortos. Em 1988, o naufrágio do Bateau Mouche fez 55 vítimas fatais na Baía de Guanabara. Dez anos depois, o desabamento do edifício Palace II, no Rio de Janeiro, causou a morte de oito pessoas. No ano passado, outro desabamento no Rio matou 17 moradores. Ano após ano, a temporada de chuvas deixa um rastro de mortes e desabrigados por todo o país.

Um traço comum em todas essas catástrofes é a tolerância ou conivência das autoridades com pequenos delitos, o chamado “jeitinho” brasileiro, estudado por antropólogos como Sérgio Buarque de Hollanda e Roberto Damatta.

Na boate Kiss, técnicos e peritos identificaram uma série de irregularidades. O extintor de incêndio, por exemplo, falhou ao ser acionado na tentativa de conter o primeiro foco. Havia apenas uma porta de entrada e saída e faltavam luzes de emergência, o que fez com que muitas pessoas corressem para o banheiro, onde morreram asfixiadas. Os seguranças, mal treinados, chegaram a impedir a fuga dos frequentadores, achando que tentavam sair sem pagar a conta, e o estabelecimento não possuía brigadas de incêndio.

Hoje, no Brasil, não existe uma lei federal que determine medidas de prevenção de incêndios. Um conjunto de normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) norteia a elaboração de leis estaduais e decretos municipais. A fiscalização fica a cargo das prefeituras e do Corpo de Bombeiros.

Para muitos empresários, contudo, sai mais barato pagar propinas do que atender às normas de prevenção. Eles contam também com a deficiência dos serviços públicos e a confiança do público, que desconhece os perigos da balada. Somente em São Paulo, por exemplo, 600 boates estão em situação irregular, de acordo com a prefeitura.

Do mesmo modo que os incêndios similares que aconteceram na Argentina (2004) e nos Estados Unidos (2003), matando, respectivamente, 194 e 96 pessoas, o incidente na boate Kiss provocou mutirões de fiscalização e denúncias de irregularidades, que levou ao fechamento de centenas de casas noturnas em todo o país.

O centro do debate, entretanto, é a incompatibilidade entre progresso socioeconômico e maus costumes e vícios na vida política e privada, nas pequenas ações cotidianas que terminam em grandes tragédias nacionais.

FIQUE LIGADO
Apesar de estarmos diante de um fato provavelmente isolado, que se espera não volte a acontecer, o incêndio em Santa Maria levanta algumas questões relacionadas à constituição da sociedade brasileira. A inexistência de legislação que determine medidas de prevenção de incêndios remete à própria questão das leis no Brasil (quais são?, como são feitas?, etc.). O "jeitinho" tem implicações em um problema nacional crônico: a corrupção. Finalmente, como o problema se relaciona especificamente às autoridades municipais, vale a pena conhecer melhor essa instância do Estado: o município.


Fonte: http://educacao.uol.com.br/disciplinas/atualidades/tragedia-em-santa-maria-o-que-a-balada-tem-a-ver-com-cidadania.htm